CULPA
Texto de Joanna de Angelis, do livro “Conflitos Exis- tenciais”.
Duas são as causas psicológicas da culpa: a que procede da sombra escura do passado, da consciência que se sente responsável por males que haja praticado em relação a outrem e a que tem sua origem na infância, como decorrência da educação que é ministrada.
A culpa é resultado
da raiva que alguém sente contra si mesmo, voltada para dentro, em forma de
sensação de algo que foi feito erradamente.
Este procedimento
preexiste à vida física, porque originário, na sua primeira proposta, como
gravame cometido contra o próximo, que gerou conflito de consciência.
Quando a ação foi
desencadeada, a raiva, o ódio ou o desejo de vingança, ou mesmo a
inconsequência moral, não se permitiram avaliação do desatino, atendendo ao
impulso nascido na mesquinhez ou no primarismo pessoal. Lentamente, porém, o
remorso gerou o fenômeno de identificação do erro, mas não se fez acompanhar de
coragem para a conveniente reparação, transferindo para os arquivos do Espírito
o conflito em forma de culpa, que ressuma facilmente ante o desencadear de
qualquer ocorrência produzida pela associação de ideias condutora da lembrança
inconsciente.
Quando isto ocorre,
o indivíduo experimenta insopitável angústia, e procura recurso de autopunição
como mecanismo libertador para a consciência responsável pelo delito que
ninguém conhece, mas se lhe encontra ínsito no mapa das realizações pessoais,
portanto, intransferível.
Apresenta-se como
uma forte impregnação emocional, em forma de representações ou ideias
(lembranças inconscientes), parcial ou totalmente reprimidas, que ressurgem no
comportamento, nos sonhos, com fortes tintas de conflito psicológico.
Na segunda
hipótese, a má formação educacional, especialmente quando impede a criança de
desenvolver a identidade, conspira para a instalação da culpa.
Normalmente
exige-se que o educando seja parcial e adulador, concordando com as ideias dos
adultos – pais e educadores – que estabelecem os parâmetros da sua conduta, sem
terem em vista a sua espontaneidade, a sua liberdade de pensamento, a sua visão
da existência humana em desenvolvimento e formação.
É de lamentar-se
que as crianças sejam manipuladas por genitores e professores, quando
frustrados, que lhes transmitem a própria insegurança, insculpindo-lhes
comportamentos que a si mesmos se agradam em detrimento do que é de melhor para
o aprendiz.
Precipita-se-lhe a
fase do desenvolvimento adulto com expressões pieguistas, nas quais se afirmam:
“já é uma mocinha”, “trata-se de um rapazinho”, inculcando-lhes condutas
extravagantes, sem que deixem de ser realmente crianças.
A vida infantil é
relevante na formação da personalidade, na construção da consciência do Si, na
definição dos rumos existenciais.
A conduta dos
adultos grava no educando a forma de ser ou de parecer, de conviver ou de
agradar, de conquistar ou de utilizar-se, dando surgimento, quase sempre,
quando não correta, a inúmeros conflitos, a diversas culpas.
Constrangida a
ocultar a sua realidade, a fim de não ser punida, sentindo-se obrigada a
agradar os seus orientadores, a criança compõe um quadro de aparência como
forma de conveniência, frustrando-se profundamente e perturbando o caráter
moral que perde as diretrizes de dignidade, os referenciais do que é certo e do
que é errado.
Essa má-educação é
imposta para que os educandos sejam bons meninos e boas meninas, o que equivale
dizer, que atendam sempre aos interesses dos adultos, não os contrariando, não
os desobedecendo. Bem poucas vezes pensa-se no bem estar da criança, no que lhe
apraz, naquilo que lhe é compatível com o entendimento.
Vezes outras, como
forma escapista da própria consciência os pais cumulam os filhos com brinquedos
e jogos, em atitude igualmente infantil de suborno emocional, a fim de os
distrair, em realidade, no entanto, para fugirem ao dever da sua companhia, dos
diálogos indispensáveis, da convivência educativa mais pelos atos do que pelas
palavras.
Apesar de
pretender-se tornar independente o educando, invariavelmente ele cresce
co-dependente, isto é, sem liberdade de ação, de satisfação, culpando-se toda
vez que se permite o prazer pessoal fora dos padrões estabelecidos e das
imposições programadas.
Para poupar-se a
problemas, perde a capacidade de dizer não, a espontaneidade de ser coerente
com o que pensa, com o que sente, com o que deseja.
Não poucas vezes, a
criança é punida quando se opõe, quando externa o seu pensamento, quando se
nega, alterando a maneira de ser, a fim e evitar-se os sofrimentos.
Não se pode
concordar com tudo, e, ipso facto,
omitir-se de dizer-se o que se pensa, de negar-se, de ser-se autêntico.
Certamente a maneira de expressar a opinião é que se torna relevante,
evitando-se a agressividade na resposta negativa, a prepotência na maneira de
traduzir o pensamento oposto. Torna-se expressivo, de certo modo, não
exatamente o que se diz, mas a maneira como se enuncia a informação.
Esse hábito, porém,
deve ser iniciado na infância, embutindo-se no comportamento do educando a
coragem de ser honesto, mesmo que a preço de algum ônus.
Essa insegurança na
forma de proceder e a dubiedade de conduta, a que agrada aos outros e aquela
que a si mesmo satisfaz, quase sempre desencadeiam processos sutis de culpa,
que passam a zurzir o indivíduo na maioria das vezes em que é convidado a
definir rumos de comportamento.
A culpa pode
apresentar-se a partir do momento em que se deseja viver a independência, como
se isso constituísse uma traição, um desrespeito àqueles que contribuíram para
o desenvolvimento da existência, que deram orientação, que se esforçaram pela
educação recebida. Entretanto, merece considerar que, se o esforço foi
realizado com o objetivo de dar felicidade, a mesma começa a partir do instante
em que o indivíduo afirma-se como criatura, em que tem capacidade para decidir,
para realizar, para fazer-se independente.
Os adultos
imaturos, no entanto, diante desse comportamento cobram o pagamento pelo que
fizeram, dizendo-se abandonados, queixando-se de ingratidão, provocando
sentimentos injustificáveis de culpa, conduta essa manipuladora e infeliz.
Esse método abusivo
é normalmente imposto à infância, propiciando que a culpa se instale, quando a
criança dá-se conta de que pensa diferente dos seus pais, exigindo desses
educadores sabedoria para poderem diluí-la e apoiarem o que seja correto,
modificando o que não esteja compatível com a educação.
A culpa é algoz
persistente e perigoso, que merece orientação psicológica urgente.
As Consequências da Culpa não Liberada
A culpa encontra
sintonia com as paisagens mais escuras da personalidade humana em que se
homizia.
Os conflitos e as
mesquinhezes dos sentimentos nutrem-se da presença da culpa, levando a
estertores agônicos aquele que lhe sofre a injunção.
Acabrunha e
desarticula os mecanismos da fraternidade, tornando o paciente arredio e
triste, quando não infeliz e desmotivado.
As suas ações
tornam-se policiadas pelo medo de cometer novos desatinos e quase sempre é
empurrado para a depressão.
Vezes, porém,
outras, apresenta-se com nuanças muito especiais, mediante as quais há uma
forma de escamoteá-la através de escusas e de justificações indevidas.
Assevera-se, nessa
conduta, que é normal errar, e, sem dúvida, o é, mas não permanecendo em
contínua postura de equívocos, prejudicando outras pessoas, sem o
reconhecimento das atitudes infelizes que devem sempre ser recuperadas.
Tormentosa é a
existência de quem se nutre de culpa, sustentando-a com a sua insegurança. Tudo
quanto lhe acontece de negativo, mesmo as ocorrências banais, é absorvido como
sentimentos necessários à reparação.
A infância
conflituosa, não poucas vezes induz o educando à raiva, ao desejo de vingança,
à morte dos pais ou dos mestres. Isto ocorre como catarse liberadora do
desgosto. Quando, mais tarde, ocorre algo de infelicitador com aquele a quem
foram dirigidos a ira e o desejo de desforço, a culpa instala-se,
automaticamente, no enfermo, provocando arrependimento e dor.
Determinados
acontecimentos têm lugar, não porque sejam desejados, mas porque sucedem dentro
dos fenômenos humanos. Entretanto, a consciência aturdida aflige-se e procura
mecanismo de autopunição, encontrando na culpa a melhor forma de descarregar o
conflito.
Quando, num
acidente, alguém morre ao lado de outrem que sobreviveu, em caso de este não
possuir estabilidade emocional, logo se refugia na culpa de haver tomado o
lugar na vida que pertencia ao que sucumbiu, sem dar-se conta de que sempre
teve igualmente direito à existência.
Tal comportamento
mórbido castra muitas iniciativas e desencadeia outros processos autopunitivos
de que a vítima não se dá conta.
O arrependimento,
que deve ser um fenômeno normal de avaliação das ações, mediante os resultados
decorrentes, torna-se, na consciência de culpa, uma chaga a purgar mal-estar e
desconfiança.
Como forma de
esconder o conflito, surge a autocomiseração, a autocompaixão, quando seria
mais correto a liberação do estado emocional, mediante a reparação, se e quando
possível.
Reprimir a culpa,
tentar ignorá-la é tão negativo quando aceitá-la como ocorrência natural, sem o
discernimento da gravidade das ações praticadas.
À medida que é
introjetada, porém, a culpa assenhoreia-se da emoção e torna-se punitiva,
castradora e perversa.
Gerando
perturbações emocionais, pode induzir a comportamentos doentios e atitudes
criminosas, em face de repressões da agressividade, de sentimentos negativos
incapazes de enfrentamentos claros e honestos que empurram para a traição, para
os abismos sombrios da personalidade.
Porque se nutre dos
pensamentos atormentadores, o indivíduo sente-se desvalorizado e aflige-se com
ideias pessimistas e desagradáveis. Acreditando-se desprezíveis, algumas
personalidades de construção frágil escorregam para ações mais conflitivas.
Nos criminosos
seriais, por exemplo, a culpa inconsciente propele-os a novos cometimentos
homicidas, além do inato impulso psicopata e destrutivo que lhes anula os
sentimentos e a lucidez em torno das atrocidades cometidas. Portadores de uma
fragmentação da mente, permanecem incapazes de uma avaliação em torno dos
próprios atos.
Podem apresentar-se
gentis e atraentes, conseguindo, dessa forma, conquistar as suas futuras
vítimas, antegozando, no entanto, a satisfação da armadilha que lhes prepara,
estimulando-0s ao golpe final.
Bloqueando a culpa,
saciam-se, por breve tempo, na aflição e no desespero de quem leva à
comsumpção. Quanto maior for o pavor de que o outro dê mostra, mais estímulo
para golpear experimenta o agressor. A fúria sádica explode em prazer mórbido e
cessa até nova irrupção.
Processos de Libertação da Culpa
Há uma culpa
saudável que deve acompanhar os atos humanos quando os mesmos não correspondem
aos padrões do equilíbrio e da ética. Esse sentimento, porém, deve ser encarado
como um sentido de responsabilidade.Sem ela, perder-se-ia o controle da situação, permitindo que os indivíduos agissem irresponsavelmente.
Todas as criaturas
cometem erros, alguns de natureza grave. No entanto, não tem por que desanimar
na luta ou abandonar os compromissos de elevação moral.
O antídoto para a
culpa é o perdão. Esse perdão poderá ser direcionado a si mesmo, a quem foi a
vítima, à comunidade, à Natureza.
Desde que a paz e a
culpa não podem conviver juntas, porque uma elimina a presença da outra,
torna-se necessário o exercício da compreensão da própria fraqueza, para que
possa a criatura libertar-se da dolorosa injunção.
A coragem de pedir
perdão e a capacidade de perdoar são dois mecanismos terapêuticos liberadores
da culpa.
Consciente do erro,
torna-se exequível que se busque uma forma de reparação, e nenhuma é mais
eficiente do que a de auxiliar aquele a quem se ofendeu ou prejudicou,
ensejando-lhe a recomposição do que foi danificado.
Tratando-se de
culpa que remanesce no inconsciente, procedente de existência passada, a
mudança de atitude em relação à vida e aos relacionamentos, ensejando-se
trabalho de edificação, torna-se o mais produtivo recurso propiciador do
equilíbrio e libertador da carga conflitiva.
Ignorando-se-lhe a
procedência, não se lhe impede a presença em forma de angústia, de insegurança,
de insatisfação, de ausência de merecimento a respeito de tudo de bom e de útil
quanto sucede... Assim mesmo, o esforço em favor da solidariedade e da
compaixão, elabora mecanismos de diluição do processo afligente.
É comum que o
sentimento de vergonha se instale no período infantil, quando ainda não se tem
ideia de responsabilidade de deveres, mas se sabe o que é correto ou não para
praticar. Não resistindo ao impulso agressivo ou à ação ilegítima, logo advém a
vergonha pelo que foi feito, empurrando para fugas psicológicas automáticas que
irão repercutir na idade adulta, embora ignorando-se a razão, o porquê.
A culpa tem a ver
com o que foi feito de errado, enquanto que o sentimento de vergonha denota a
consciência da irresponsabilidade, o conhecimento da ação negativa que foi
praticada.
Somente a decisão
de permitir-se herança perturbadora, que remanesce do período infantil,
superando-a, torna possível a conquista do equilíbrio, da auto-segurança, da
paz.
A saúde mental e
comportamental impõe a liberação da culpa, utilizando-se do contributo valioso
do discernimento que avalia a qualidade das ações e permite as reparações
quando equivocadas e o prosseguimento delas quando acertadas.