Cada um de
Nós é uma Multidão
por Diana Whitmore (#)
O artigo a seguir foi
extraido do livro de Diana Whitmore Joy of Learning, Aquarian Press,
Dartford, UK - 1990, capítulo 4. O artigo foi traduzido para o português por
Andrée Samuel. [nota do Redator]
Mary,
uma jovem de 11 anos, acorda cedo para ter um tempo na companhia de sua mãe
antes dessa ir para o trabalho e Mary para o colégio. Esse momento especial
para Mary e para a mãe é vivido tranqüilamente lendo um livro e conversando
sobre o dia que terão pela frente. Mary curte muito esses momentos nos quais
sua mãe é muito amorosa com ela e tende a regredir para um comportamento de uma
criança com idade inferior à que ela de fato tem. Ela busca a segurança, o
afeto e a atenção de sua mãe de um modo muito infantil, evocando na mãe
sentimentos de proteção, de pegá-la no colo e abraça-la.
Mary
vai para a escola, encontra sua amiga e parece ser uma pessoa diferente. Com a
sua amiga Mary parece mais velha, orgulha-se de suas notas da aula de artes
parecendo estar muito confiante em si e à vontade. Ela diz para a amiga a que
farão após as aulas e ela decide que jogos jogarão no recreio. Ela claramente é
o líder nessa relação sendo que a sua amiga tem um papel de subserviência.
No
caminho da escola Mary e sua amiga encontram dois meninos de sua classe e,
novamente, o comportamento de Mary se modifica. Agora ela é agressiva e
impetuosa, caçoando dos meninos e provocando-os, irritando-os chegando até o
ponto de empurrar um deles. Ela claramente não gosta de um dos meninos e
demonstra-lhe isto verbalmente e através do seu comportamento.
Na
escola, na aula de matemática, mais uma vez o comportamento de Mary se modifica
dramaticamente; agora ela parece confusa, perto das lagrimas e incapaz de
trabalhar. Pede a ajuda constante do professor, não compreende a tarefa a ser
feita e é surpreendida copiando a lição de outra criança. Quando confrontada
com esse comportamento, ela chora copiosamente dizendo que é burra, é incapaz
de fazer a lição de matemática e que é um fracasso.
À
tarde, na sua aula predileta – artes – Mary se sai brilhantemente demonstrando
um grande talento artístico e muita criatividade. Ela está radiante,
cooperativa contribuindo para animação da sala. Ela ajuda as outras crianças
demonstrando sensibilidade e compaixão.
Num
período curto de tempo Mary demonstrou cinco tipos diferentes de
comportamentos, indo de um extremo ao outro. Ela parece ser diferentes pessoas
e pode estar confusa pelo seu próprio comportamento inconsistente chegando até
a pensar que deve haver algo errado com ela. Ela pode estar assustada com seu
comportamento agressivo e procurar contrabalança-lo sendo uma boa menina.
Há
tantas partes diferentes em nós e tantas variedades de comportamentos e estados
internos nos quais entramos que tudo isto parece estar fora do nosso controle
consciente. Podemos nos sentir às vezes como sendo várias diferentes pessoas, a
despeito de nós mesmos. Quando uma criança se comporta mal, geralmente sente
que o fez a despeito de si mesmo – ele não queria realmente ser difícil ou
causar o transtorno pelo qual está sendo repreendido.
Assim
como as crianças se percebem agindo diferente em situações diferentes, o mesmo
ocorre com os adultos – até mesmo com os educadores. É claro que nosso
comportamento como educadores varia em função daquilo que acontece na nossa
vida pessoal, daquilo que sentimos e do como nossas crianças estão se
comportando. Nosso estado interno pode mudar repentinamente da paciência e
compaixão para a irritação e o desgosto. Nosso diretor aparece na sala de aula
e nos tornamos o professor ideal, orientando a classe com muita habilidade.
Podemos estar claramente conscientes da nossa necessidade de impressiona-lo com
nossos talentos educacionais. Quando Mary se mostra confusa e chorosa durante a
aula de matemática, podemos às vezes sentir compaixão e pacientemente ajuda-la
nesse momento difícil para ela. Em outros momentos, talvez por ter sido aquele
um dia extenuante, nos sentimos cansados com esse seu comportamento e não lhe
damos atenção achando que já está na hora dela aprender a não ser mais uma
“criancinha”.
Podemos
facilmente perceber nossa própria multiplicidade reconhecendo o quanto
modificamos nossa aparência na vida, nossa auto-imagem, nossa percepção e nosso
comportamento em relação aos outros assim como nossa experiência interior. A
vida pode nos parecer: uma luta, uma dança maravilhosa, um jogo prazeroso, uma
tarefa a ser cumprida ou uma existência plena de significado. Um modo de
perceber essa multiplicidade é através do modelo das subpersonalidades.
As
subpersonalidades são configurações autônomas dentro do todo da personalidade.
São identidades psicológicas, co-existindo como uma multiplicidade de vidas
numa pessoa; cada subpersonalidade tem padrões de comportamentos específicos e
características individuas formando uma entidade relativamente unificada. Cada
uma delas tem um estilo e uma motivação por si só que é freqüente e
surpreendentemente diferente das outras subpersonalidades. De um certo modo,
cada um de nós é uma multidão. Numa criança pode ter o aprendiz cooperativo, o
artista brilhante, o super leitor, o rebelde, a criança regredida, o
organizador, o palhaço da classe, o amigo amoroso, o sabotador, a boneca
adorável, o líder maduro, etc. No educador pode ter a mãe frustrada, o “baby
sitter” que se sente aborrecido, o santo satisfeito, o mártir sacrificado, a
atriz fracassada, o psicólogo analítico, a autoridade intolerante, o idealista
irritado, o doador cansado, o facilitador paciente, o pragmático rígido ou o
professor sábio. Cada um dessas características ou subpersonalidades
disparatadas demonstrará posturas e mesmo estados físicos únicos; terá suas
qualidades emocionais próprias e terá uma determinada atitude mental com
crenças, atitudes e visão de mundo correspondentes.
Cada
subpersonalidade tem sua própria maneira de se relacionar e de se expressar.
Freqüentemente, as subpersonalidades são reativas ao ambiente e são estimuladas
por eventos. Por exemplo, se eu retornar do trabalho e encontrar a casa
bagunçada, minha subpersonalidade “arrumadeira” aparece, eu me sinto com raiva
e me recuso a cozinhar o jantar. Se uma criança se comporta mal, o educador
pode ter evocada a sua subpersonalidade “autoridade intolerante”; se por outro
lado a mesma criança está assustada, o “facilitador paciente” pode emergir. Da
mesma maneira, uma criança pode se comportar de um modo cooperativo e sensível
na classe, e se transformar em monstro em casa.
Uma
grande limitação para o desenvolvimento da criança, e para a emergência de sua
própria personalidade única, pode ocorrer quando ela se identifica fortemente
com um familiar e quando essa identificação é tão completa que ela se torna um
retrato vivo desse familiar, possuindo todos os maneirismos e idiossincrasias
dessa pessoa. O modelo de subpersonalidade pode ser usado para aliviar esse
estado não saudável, desviando a atenção para outras subpersonalidades, mesmo
para subpersonalidades desconhecidas, permitindo-lhes soltar essa
identificação.
Quando
uma pessoa está identificada com alguma de suas subpersonalidades, sua vivencia
é de que ela é essa subpersonalidade e, como conseqüência, ela perde o acesso
com o todo que é a sua personalidade. Por exemplo, se eu estiver identificada
com uma subpersonalidade predominantemente emocional, estarei sendo governada
pelos meus sentimentos e estarei afastada da minha mente racional. Se eu
estiver identificada com uma subpersonalidade profissional poderei estar
afastada dos meus sentimentos e/ou de minha intuição. As subpersonalidades em
si não são limitantes; é a nossa identificação inconsciente com elas que é
limitante.
Assagioli
descreveu a incongruência que aparece às vezes entre as subpersonalidades
quando escreveu:
“Não
estamos unificados; freqüentemente achamos que o estamos, porque não temos
muitos corpos nem muitos membros, nem porque uma mão geralmente não machuca a
outra. Porém, metaforicamente, isso é exatamente o que acontece conosco. Várias
subpersonalidades lutam continuamente: impulsos, desejos, princípios,
aspirações são envolvidos numa briga continua.”
Idealmente
nós queremos o acesso à nossa personalidade inteira para escolher um
comportamento apropriado de acordo com a situação de nossa vida. Nossas
subpersonalidades são como músicos de uma orquestra; com cada instrumento
tocando a sua própria musica, a desarmonia e talvez o caos resultarão.
Evidentemente a orquestra precisa de um maestro que dirigirá os instrumentos
para criar uma sinfonia harmoniosa. Todos os músicos são necessários, mesmo que
em certos momentos um ou outro seja chamado a apresentar-se solo.
Freqüentemente nossa experiência do dia a dia é semelhante à desarmonia de uma
orquestra, com as diversas partes nossas procurando uma expressão e controlando
inconscientemente nosso comportamento, em vez de se organizar de uma maneira
complementar.
Estamos
todos sujeitos a nos deparar com forças desconhecidas dentro de nós mesmos.
Podemos nos perceber ressentidos ou ameaçados por algo ou alguém; é de grande
importância que façamos um exame cuidadoso das motivações subjacentes a esses
sentimentos. Talvez estejamos vivenciando uma situação que nos confronta com nossa
idiossincrasia de como gostaríamos que as coisas fossem; talvez essa situação
e/ou essa pessoa representa algo com o qual inconscientemente temos medo de nos
confrontar. Quando não damos a devida atenção a esses estados internos, quando
os deixamos de lado ou os jogamos em baixo do tapete, nossa percepção da
realidade e nossas relações tendem a se dar de um modo distorcido.
(#) Diana Whitmore: Psicoterapeuta; MA em
Educação Confluente, pela Universidade de Califórnia; estudando PhD em Educação
pela Universidade de Surrey; fez treinamento didático com Dr. Roberto
Assagioli, fundador da Psicossíntese; fez treinamento de Psicossíntese
Humanística no Instituto Esalen, Califórnia.
Presidente, e anteriormente Diretora Executiva, do "Psychosynthesis & Education Trust" Centro de Psicossíntese de Londres, que foi
fundado pelo Dr. Roberto Assagioli em 1965; Diretora Fundadora do "COUI
/ UK - Children: Our Ultimate Investment"; Vice-Presidente do Conselho do "COUI / USA - Children:
Our Ultimate Investment"; dirige
atualmente o programa "Teens & Toddlers" para prevenção de gravidez nas
adolescentes; Membro do Conselho de Diretores do "Findhorn
Foundation College"
Com mais de 28 anos de prática de psicossíntese, ela
treinou numerosos profissionais em psicoterapia, aconselhamento e educação em
toda Europa. Autora dos livros "The Joy
of Learning - A Guide to Psychosynthesis in Education" Ed. Crucible / The
Aquarium Press, UK - 1990 e "Psychosynthesis Counselling in Action"
Ed. SAGE Publications, London - 2000.
FONTE: http://www.psicossintese.org.br/Artigos/Multidao_Diana.asp